Não deveríamos chamar as redes de antissociais?
Desde a primeira rede social de alcance global, muitas outras vieram e conquistaram legiões de usuários altamente envolvidos em tudo que é proposto. Mas muita coisa mudou desde então…
Não se trata apenas de redes com propostas diferentes, mas como diferente também tem sido o comportamento daqueles que delas participam, a ponto de muita gente chamá-las de redes antissociais.
Os fatores que são responsáveis por esse cenário, com consequências negativas para todos, é o foco desse nosso bate-papo.
O que é uma rede social?
Não temos a pretensão de responder a pergunta acima supondo que alguém não saiba o que é uma rede social. Todo mundo sabe a resposta.
A questão é ir um pouco além e com isso começar a nossa análise do cenário atual.
Quando um dos projetistas do Google, o engenheiro de origem turca Orkut Büyükkökten criou a rede que recebeu seu nome, sua principal proposta era ajudar os usuários a encontrar novos e velhos amigos e manter relacionamentos existentes.
Partia do pressuposto que o tempo e as distâncias, bem como o ritmo da vida moderna e das grandes cidades, afastavam as pessoas, diminuía o contato entre elas e das muitas situações da vida em comum, enfim, prejudicava o convívio social. Deveria ser apenas uma ferramenta para resgatar um pouco disso que se perdeu, mas sem a pretensão de substituir as relações presenciais.
Aliás, ao fazermos uma análise das palavras-chaves da reflexão acima, temos:
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Socializar – ato de inserir uma pessoa na sociedade, em convívio social;
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Conviver – ato de viver com alguém de maneira próxima, frequente ou quotidianamente;
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Vida em comum – coexistência, coabitação, repartir intimidade e experiências.
Em 2004 e nos primeiros anos do Orkut, o mundo, as pessoas socializavam, conviviam e levavam uma vida em comum, predominantemente de forma presencial. Tal qual foi ao longo da história humana.
A rede deveria fazer o mesmo que outras tecnologias que a precederam, fizeram. Como os meios de transporte que ajudaram a encurtar as distâncias. Depois, o telefone. E finalmente a Internet, e que mesmo antes da popularização do Orkut, já oferecia meios alternativos, como o MSN Messenger ou o ICQ.
Até então, nada havia tido o poder de substituir o abraço, o aperto de mão, o olho no olho, a ida ao cinema ou ao bar na companhia das pessoas mais caras, as festas e reuniões de amigos e tudo o mais que só as relações presenciais são capazes de proporcionar.
Mas então, logo a mudança aconteceu…
A evolução das redes sociais
Os primeiros anos da evolução do Orkut coincidiram com a redução de preço dos desktops e notebooks, com o aumento da oferta de conexões de Internet de alta velocidade e o surgimento dos primeiros smartphones. Era o cenário propício para que os usuários conhecessem a conectividade 24 horas dia, 7 dias por semana e com isso, abrirem a porta para o virtual.
Era a transformação digital em pleno curso.
Em setembro de 2006, o Facebook que até então era exclusivamente uma rede de estudantes, abriria para o público em geral e junto com ele, outros serviços que teoricamente tinham como premissa a socialização de pessoas, estavam avançando.
Pessoas do mundo todo tinham opções de diferentes redes sociais para “socializarem-se” uns com outros e a depender das suas escolhas, recursos para exercerem essa nova forma de “convívio”, que agora era digital.
Se antes no Orkut era possível encontrar textos de várias centenas de palavras, elaborados por seus usuários e nas comunidades, um dos “queridinhos da vez”, o Twitter, limitava postagens de 140 caracteres.
Os emojis, as curtidas, os compartilhamentos das redes sociais que se apresentavam como alternativa ao pioneiro Orkut e as ainda reduzidas telas dos celulares, eram um convite para os usuários “expressarem-se” cada vez menos fazendo uso da palavra escrita.
Para quê dizer o que se pensava sobre qualquer publicação, se bastava um “joinha” e um emoji que poderiam ser entendidos da mesma maneira? No aniversário do amigo, por que pensar nas palavras que traduzem as emoções e os sentimentos, se uma imagem com alguns dizeres podia ser “emprestada” de algum dos milhares de perfis que já integravam a sua rede pessoal?
Inclusive foi em algum momento desse avanço, que ter várias milhares de contatos, amigos, seguidores, ou seja lá a designação usada, passou a significar status, não propriamente social, mas digital.
Você me segue, eu te sigo, assim como todo mundo do meu trabalho, da minha vizinhança, da família, dos grupos que achei interessantes e logo os amigos desse pessoal todo e os amigos dos amigos também. Por que não?
E isso só reforçou, que agora com 12982 pessoas na minha lista de contatos, era impossível escrever alguma coisa para alguém. Dou “joinha” para tudo que todo mundo publicar e quando sobrar um tempo, mando uns emojis também. Se for absolutamente necessário escrever algo, uso o “internetês”, que abusa dos neologismos, das abreviações e dos termos que agora estão na boca – ou na ponta dos dedos – de todo mundo.
Nesse meio tempo também, os influenciadores que em parte “nasceram” nos blogs, viraram celebridades e se tornaram recordistas de seguidores.
Foi quando ter muitas curtidas, virou o novo parâmetro de status digital. Passou a medir o quão bom é algo, pelo número associado. Foi também o nascimento das redes antissociais e que só por coincidência, marcava o declínio e prenunciava o fim da primeira grande rede de fato social – o Orkut.
Em paralelo e em meio a essa rápida evolução, os jovens pais emprestavam ou até mesmo compravam celulares para seus filhos, que envolvidos com tudo o que havia naqueles fascinantes e cada vez mais poderosos aparelhos, não davam trabalho e não lhes pediam atenção.
Essa geração de pequenos nativos digitais, nasceu e cresceu em um mundo novo em que as experiências físicas e presenciais, já eram dispensáveis. O virtual foi onde eles se acostumaram a “estar” e para alguns, tornou-se até a principal forma de "existir".
O restante dessa estória, ainda não tem um fim, já que representa o hoje, o momento em que mais do que nunca, merecem ser chamadas de redes antissociais…
Por que as redes são antissociais?
A resumida evolução que apresentamos acima, traz-nos aos dias de hoje e a um panorama bem diferente dos primeiros dias.
Ser apenas diferente, por si só não é necessariamente ruim. Tampouco, pretende-se uma volta ao passado.
Todavia, quando se olha com uma visão mais crítica e aguçada para as redes sociais, vê-se mais uma vez apenas por coincidência, uma série de “sintomas”:
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Muitos jovens têm enorme dificuldade em se expressar e se comunicar de forma correta. Quando instados a escrever, produzem textos sem pontuação, repletos de erros ortográficos e gramaticais, ou como se estivessem falando, afinal tudo o que eles fazem rotineiramente, pode ser substituído por um emoji, um gif, uma foto com uma mensagem pronta, pasteurizada, fria e impessoal;
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O compartilhamento acabou com a criatividade. Não é preciso mais criar nada. Alguém já foi autêntico e original por mim, bastando um CTRL+C e CTRL+V, que se resolve praticamente qualquer coisa;
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Livros, ciência e professores, não são mais importantes. Sempre será possível encontrar um ou muitos grupos de especialistas no que se quiser saber e que nem precisam provar nada, mas apenas reforçar as convicções sobre o que acredita ser o certo. Fake news e desinformação é só coisa de quem pensa diferente de mim;
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Atrás de uma tela, de um teclado, o discurso de ódio, o preconceito e a discriminação e tudo o que não é socialmente aceito, ganham espaço e as pessoas parecem inalcançáveis e impunes ao que fazem, ao que dizem. E quando são responsabilizadas por seus atos, respondem sob alegação de cerceamento de suas liberdades mais fundamentais;
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A nomofobia e a dependência digital tem se apresentado com um dos males do século XXI, sendo inclusive tratadas como questão de saúde pública em muitos países;
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Alguns dos aspectos que mencionamos até aqui, bem como outros que não fazem parte do assunto, criam um ambiente perigoso e tóxico para as crianças, exigindo um controle parental próximo e eficiente, a fim de preservar sua segurança e integridade emocional e cognitiva;
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Os algoritmos das redes têm como único objetivo acumular conhecimento sobre nós, sejam os nossos dados pessoais, sejam os comportamentos que temos, para então lucrar com essa base de conhecimento, mesmo as custas da nossa privacidade e não raras vezes comprometendo até mesmo a nossa segurança no ambiente digital, como nos casos de vazamento de dados;
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Também eles – os algoritmos do Face e Insta – estão cada vez mais entregando aos usuários conteúdos de pessoas que elas não seguem, tal como faz o TikTok, informação essa confirmada por Mark Zuckerberg. Ou seja, estamos sendo empurrados para uma "vida digital" sem conexões no mundo real;
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Segundo estudo científico da OMS (Organização Mundial da Saúde), os transtornos psiquiátricos – como os casos de depressão – tiveram um “boom” de 25% por conta da pandemia do COVID-19 e em função do isolamento social, reforçando que a ausência de socialização produz consequências negativas nos indivíduos. Outras pesquisas demonstram que as pessoas que moram sozinhas são as mais afetadas por depressão, corroborando que na medida em que diminui o convívio presencial, aumenta o ônus psicológico;
A lista acima poderia ser ainda mais extensa, mas é suficiente para enxergarmos que o tempo das conversas reais e permeadas da troca de ideias, a capacidade de ouvir uns aos outros, a reflexão e ponderação civilizada e a capacidade de colocar ideias e sentimentos em palavras, parece ter ficado no passado.
Não é difícil entender porque merecem ser chamadas de redes antissociais, quando pessoas que têm muito mais motivos para conviverem harmonicamente, rompem umas com as outras e se isolam em grupos e bolhas de verdadeiros desconhecidos e que se preocupam mais em serem donos da verdade e se cercarem daqueles que compartilham da mesma "verdade".
A erosão democrática que temos presenciado, é outro sintoma, uma vez que a existência da democracia, entre outras coisas, pressupõe o convívio e aceitação de quem pensa diferente.
A mesma tecnologia que deveria ter o papel de nos aproximar e de facilitar a socialização, é a mesma que na verdade tem nos afastado uns dos outros.
Se por ocasião da primeira rede social, nós pudemos reencontrar aqueles velhos amigos do tempo da escola e que não víamos há 10 ou 20 anos, agora por conta delas, afastamo-nos até daqueles que estão apenas a alguns metros.
Sim, porque basta um enviar emoji, ou um GIF engraçadinho, dar uma curtida e a suposta sensação sociaização com alguém da quilométrica lista de "contatos", satisfaz o ser que nasceu e viveu por séculos agrupando-se em sociedade.
Pessoas de 50 anos, que comportam-se no mundo virtual como se tivessem 15 e os de 15, como se não houvesse um mundo real para ser descoberto e vivido.
Tudo isso, não é para estimular ninguém a abandonar as redes sociais, mas para discutir e repensar o quão antissociais não estamos nos tornando ao "viver" intensamente ativos e mergulhados nelas…
Conclusão
O objetivo das redes sociais ficou perdido no passado. Já há algum tempo elas mais afastam e tornam antissociais as pessoas, do que estreitam seu convívio.